segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

História dos Luneiros - Eduardo Galeano

Ossos velhos, olhos de luz gasta. Dá pra ver que tudo está amarelo. Me vejo. Lá longe me vejo, nos anos amarelos do tempo.


Fui mulher de homem andarilho, sempre rodando terra. Ele e eu íamos pelos caminhos, uma sacolinha nas costas e caçando trabalho. Gastar os pés, moer ossos: cravando mourões de cerca, marcando gado, o que viesse, o que fosse. Ninguém ficava na cidade. Dois, três  no máximo. E o sino da igreja, mudo, morto de sede. Até que uma vez, naquela seca grande...



Estou aborrecendo você. A avó, sempre com a mesma história. Venha cá, vamos botar o feijão de molho. Não consegue dormir? Eu não durmo nunca. A vida inteira aprendendo, e ainda não sei. Chega aqui, na cozinha é melhor. A avó sabe. Para noite sem sono, para dia sem alma, é melhor. Fogão de lenha que não se apaga. Nunca.



Já contei a história dos luneiros? Os que chegaram aqui. Não, eu não vi. Eles não eram de ver, não eram de pegar. Luneiros vindos no escorregador do céu  Verdade verdadeira, juro pela cruz. O contrário, se você escutar dizer, não acredite. Aqui, na cidade, sei que rumorejam. Que gente humana pisou na lua, andam mentindo isso. Eu não sei ler e abusam da fé da gente. Mas subir daqui pra lá, imagine só, quem conseguiria? Eles, os luneiros, viajaram de lá para cá. Isso sim. Fica na descida, né?   



Amigos do seu avô. Muito cavalheiros comigo. E com o avô, claro: unha e carne. Eles não conheciam ninguém na cidade. Nós também não. Nós quase que vínhamos da lua.



O deserto. Você nunca viu. Nada, ninguém  E chegou a seca grande. Com as ultimas gotas banhamos a galinha, e dizem que isso traz água  Muita reza, muita vela. E nada. E então adeus, vamos para nunca mais, carregando a roupa nos ombros. Travessia de terra morta, peregrinar de retirantes. Longe, longe, como nunca. Cruzamos o rio Salgado, sujo, baixinho, e anda que te anda andando para lá, buscando verde, no contra-sol de dia, no mapa das estrelas de noite. E finalmente, foi de noite, o brilho, a aparição  os trilhos do trem. 

Chegamos á estação mais mortos que vivos. Estendemos as moedas, as notas amarfanhadas, o vendido e o guardado, tudo: duas passagens até onde der. E tracatracatracaqueteava o trem, buúúú, buúúúúú, dia e noite, noite e dia, nós quietos e o mundo viajando, outro mundo, as árvores passavam a galope, as casas bonitas, limpinhas.


E parou. Acabou. Mandaram descer. Lá fora chovia, entramos na chuva. Parados na chuva, nós dois. De boca aberta, de braços abertos, chuva que chovia todas as lágrimas de Deus.



E entramos na cidade. Nós, feito cegos em tiroteio. O nunca visto. Gente muita e muita, e apressada. Automóveis em tropel, rugidos de bicho louco. Máquinas espantando gente, máquinas comendo gente. Tudo proibido. Nenhum lugarzinho pra gente mijar, nem para dormir. Quem sabe ler, lê: Proibido. Quem não sabe, aprende na porrada, curso de pobre.



Sim, rapazinho, já sei. Os luneiros, sim. Sou das que gostam de botar palavras passeando, mas me perder não me perco.

Conto. Quando os luneiros chegaram, ninguém ficou sabendo. Ele estava de burro. O avô era burro de carga na padaria. Não falava com ninguém  O lombo amassado debaixo de lenha, debaixo dos pães, resmungava sozinho. Burro sem rabo? Burro burro. Pele cinzenta, orelhas compridas, peludas. E levantou uma orelha, e a música entrou. A música  dos luneiros, soando, tocando só pra ele. Acredite, foi assim como estou contando: a música derrubou o avô. O avô  tornou a ser gente, foi salvo. O padeiro dava as sobras pra nós. Não deu mais. Gente não queria sobra.


Depois ele continuou escutando. Os luneiros curaram a sua perna. A cobra estava lá dentro da perna, cobra grande, mordida funda. Tinha sido no carnaval, no corte, facão voando, longe. Historia velha, coisa de nunca acabar. A ferida se fechava, tudo bem, e um belo dia, paf, a cobra acordava, rasgava a cicatriz, cheirava mal, apodrecia. E a música entrou na perna, a música botou a cobra pra fora. De perna nova, o avô dançou.



Dançar, beber, comer. Um vidão. Os luneiros queriam conhecer. Vamos lá, vamos cá. Loucos pela cidade, apreciadores de tudo. Lugares grã-finos, peles brancas, cabelos de ouro, roupas de prata, imagine só, se conseguir. Você nunca vai entrar, nunca. Cabeça chata, pobre proibido. Os luneiros sim: vento abridor de portas, e o avô vindo atrás e eu de braço dado, com passo de rainha, ás suas ordens, madame. Dinheiro?

Nada. Os luneiros tocavam e ponto, nada a cobrar, nada a pagar, música, música, e a festa continua. Gente de não dormir nunca, aqueles luneiros. Gente da noite, olhos abertos. Como você e eu, pelo menos nisso.


E certa noite, se acabou. Nada de farra, nada de luneiros. Foram embora. Pra onde? Quem sabe. Ninguém é sabedor desse segredo. Estarão por aí, ou melhor, por lá, nao é mesmo?, por lá, nos céus.

Como eles eram? Feito marcianos, com anteninhas? Você não esta me escutando. Ninguém via os luneiros.


O tempo passou. Trabalho, filhos, muito cansaço. Nem soube contar os anos, nem sei dizer quantos. O que sei é que uma noite o avô dormia, e eu escutei o ruído. Assim, de repente. A música saiu do corpo dele. Pelos poros, e foi pelo ar, encheu a escuridão. Eu sacudi o avô, acordei ele. O que está acontecendo? Ninguém entendia.



Ninguém sabia. Lá dentro do seu avô  havia música, a música tinha ficado lá. Os luneiros haviam deixado a música. E era muito caprichosa, só saía quando queria. E então o corpo cantava, e se acendia, luz que soava no ar. Não tinha dia, não tinha hora. Do jeito que vinha, ia. Tivemos tempo de muita música, noites de som e som, o bairro inteiro lá em casa, gente de longe, multidão  Musicando amanhecia, e continuava. Com os ouvidos a gente via a música, ela tinha cores. Quem escutava, nascia. Até o ar agradecia, os pássaros se calavam.



Todos os pássaros mudos, enquanto ela estava. Ela era melhor que os pássaros, os pássaros sabiam. Vinham em revoada, esticavam as orelhas.



Durou quanto quis. E depois, adeus. Nunca mais voltou. Espera enorme, e nada. Nunca, nunca mais. Se acabou, se apagou. Pobre mundo sem música.

Coisa linda o silêncio, sou das que gostam. Mas esse silêncio... O avô  ficou de cabelos brancos, cor de leite aquela melena negra. Olha o retrato, veja só. O avô dormia. Bebia, chamava a música, dormia. Arrebentava tudo, brigava, um esparramo de garrafas, e roncava outra vez.
Morreu disso. Bêbado, chamando, chamando: morreu de música.


Agora vai dormir, vai.

Venha, venha, chega aqui. Traga o lampião, não durma, não. Um favorzinho só.
A avó precisa de carta. Carteiro, eu tenho. O vizinho do lado, você sabe. Está muito doente, está morrendo. Ele se ofereceu, pessoa amável  diz que leva a carta para o céu  Eu agradeci, disse que não  O avô no Paraíso  Santo, não era. Agora, penso: Deus há de saber o endereço, a carta acaba chegando.


Eu não tenho letras. Peço a você  que vai na escola. Escreva aí. Eu assino, ponho o garrancho. Escreva aí ao escolhido pela lua. E depressa, que o carteiro ja está indo embora.

Diga aí: não fica triste não,
              não faz mal que você morre
              a gente continua agarradinho.
Diga aí que nesta noite escutei a música. 



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