terça-feira, 11 de setembro de 2012

Aproximações

Há tempos que este espaço não recebe algo de realmente próprio... e é engraçado notar que essa escassez de palavras me ocorra sempre justamente quando sinto ter muita coisa a dizer... A vontade de esvaziar é tamanha que torna-se uma imperiosa necessidade, mas as palavras se escondem e se embaralham tornando tudo muito indizível... Daí, quando preciso me esclarecer e encontro o processo criativo interno estéril, convido alguém pra falar por mim.. Assim, hoje Rainer Maria Rilke vai explicar de maneira muito aproximada ao que gostaria que fossem minhas palavras, sobre as razões que me motivam à escolha de Amar sem precisar Casar... o texto é um tanto extenso, mas vale muito a pena:

"Os homens com, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.

Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor entre duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: tem que aprendê-lo. 

Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente?

O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. 
Do amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos (escutar e martelar dia e noite). A fusão com outro, a entrega em si, toda a espécie de comunhão não são para eles (que deverão durante muito tempo ainda juntar muito, entesourar); são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.

Aí está o erro tão grave e frequente dos jovens: eles - cuja natureza comporta o serem impacientes - atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre eles e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois? Que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam sua comunhão e facilmente chamariam sua felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e a muitos outros que ainda queriam vir. Perde os longes e as possibilidades, troca o aproximar-se e o fugir de coisas silenciosas e cheias de sugestões por uma estéril perplexidade de onde nada de bom pode vir, a não ser um pouco de enjôo, desilusão e empobrecimento. 

Depois procuram salvar-se, agarrando-se a uma das muitas convenções que se oferecem como abrigos para todos nesse perigoso caminho. Nenhum terreno da experiência humana é tão cheio de convenções como este. Há nele uma profusão de cintos salva-vidas, canos e bexigas natatórias, toda espécie de refúgios preparados pela opinião que, inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil, barata, sem perigos e segura como os prazeres do público.

No entanto, muitos jovens que amam erradamente, isto é, entregando-se simplesmente sem manterem a sua solidão - e a média fica sempre nisso - , sentem o peso opressivo do erro cometido e gostariam de, à sua maneira, tornar vivedouro e fértil o estado de coisas a que se vêem reduzidos. A sua natureza lhes diz que as questões do amor não podem, menos ainda do que qualquer outra importante, ser resolvidas em comum, conforme um acordo qualquer; que são perguntas feitas diretamente de um ser humano para outro, que em cada caso exigem outra resposta, específica, estritamente pessoal. 
Mas como podem eles, que já se atiraram uns aos outros e não mais se delimitam nem se distinguem, quer dizer, que nada mais possuem de seu, encontrar uma saída em si mesmos, no fundo de sua solidão já derramada?

Eles agem num desamparo comum e, ao quererem evitar com a maior boa vontade do mundo a convenção que lhes ocorre (como o casamento), vão dar em outra solução menos clamorosa mas de um convencionalismo não menos mortal. Eles não têm, de fato, senão convenções em redor de si. Tudo o que parte de uma comunhão mal coagulada é convencional, uma decisão fortuita e impessoal, sem força nem fruto.
Quem examina a questão com seriedade, acha que como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não foi encontrada até hoje uma luz, uma solução, um aceno ou um caminho. Não se poderá encontrar, para ambas estas tarefas, que carregamos veladas em nós transmitimos sem as esclarecer, nenhuma regra comum, baseada em qualquer acordo. Na medida, porém, em que começarmos a tentar, solitários, a vida, estas grandes coisas se hão de aproximar da nossa solidão.

As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverarmos, apesar de tudo, e aceitarmos esse amor como uma carga e um tirocínio* em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência - então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós - e isto já será muito.

Até agora conseguimos apenas examinar sem preconceitos, objetivamente, as relações de um ser para com outro, e nossas tentativas de viver tais relações ainda não têm um modelo diante de si. No entanto, o caminhar do tempo traz mais de um auxílio para a nossa indecisa aprendizagem."

(Rainer Maria Rilke - Cartas a um Jovem Poeta).

Enfim, espero, luto e escolho para que "a vida amorosa de hoje tão cheia de erros" se transforme em uma "relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. E esse amor mais humano (que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta num atar e desatar claro e correto) será como "um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões."


Um comentário:

  1. Navegando pela net, de bobeira, caí no seu blog (tava procurando re-re-re-re-reler "Os três mal amados").
    Foi aí que vi essa postagem que me deu vontade demais de re-reler Rilke.
    De fato, não lembro de abstrações tão longas quanto essa naquele livrinho (digo mesmo pelo tamanho). Vou ler novamente...
    ...isso tudo lido, me fez pensar um monte sobre as milhares de reflexões sobre o amor. Já reparou que há, no mínimo, umas mil conjecturas filosóficas sobre o tema e que as mais interessantes são exatamente as que partem pro lado desse tirocínio acima dito? Drummond era muito assim. O próprio João Cabral...
    Amor é um campo muito fértil, mas que às vezes precisamos semear de longe, pra espalhar bem. E não devemos pisar muito nesse campo, senão as mudinhas não crescem...

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