quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Flor e a Náusea - Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas em ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o  perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuida em casa.

Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios.
Garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é uma flor.

Sento-me no chão da capital do país
as cinco horas da tarde e lentamente passo a mão
nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens macias avoluman-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

2 comentários:

  1. muito massa!

    se procurarmos bem, encontraremos não apenas flores, mas alguns lindos jardins nesse mundo de concreto frio... A flor mais feia supera de longe o mais ornamental dos aços e pregos!

    sejamos, pois, flores!

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